Por Olavo de Carvalho
A filosofia, enfim,
só aparece quando cumpridas determinadas condições culturais, tanto na
sociedade em geral quanto na mente do filósofo individual.
O argumento-padrão é que meninos e meninas raciocinam sobre
“problemas filosóficos” desde a mais tenra infância, perguntando, por exemplo,
se o mundo é real ou apenas um sonho, se as coisas cessam de existir quando
fechamos os olhos, se existe apenas um universo ou vários, o que nos acontece
depois que morremos ou onde elas próprias estavam antes de haver nascido.
Eu mesmo, rotulando-me ironicamente “filósofo mirim”,
registrei algumas peripécias cognitivas em que me envolvi aos cinco ou seis
anos de idade (http://www.olavodecarvalho.org/blog/), mostrando que dali se
originaram certas questões das quais vim a tratar mais tarde nos meus livros e
cursos.
Evidentemente não fui o primeiro a relatar acontecimentos
desse tipo. Ocorrem-me, no momento, a Histoire de Mes Pensées de Alain, o Éssai
d’Autobiographie Spirituelle de Nicolai Berdiaeff e a Anamnesis de Eric
Voegelin. Nem menciono, por óbvias demais, as Confissões de Sto. Agostinho e de
Rousseau.
Mas em todos esses exemplos, seja encontrados na vida real
ou na literatura, uma obviedade deveria ter logo saltado à vista do observador
sensato. Se essas perguntas ocorrem às crianças espontaneamente e sem qualquer
estímulo cultural patente, elas são simplesmente naturais e universais.
Expressam a curiosidade humana na sua forma mais direta e primitiva, tal como
aparece em todas as épocas, lugares e culturas. Sem essa curiosidade,
certamente, a filosofia não existiria. No entanto, se ela bastasse, já não digo
para constituir uma filosofia, mas para deslanchar o processo da especulação filosófica
como atividade culta, esta seria também natural e universal em vez de ter
surgido historicamente numa data bem tardia, num local bem determinado e numa
moldura demográfica das mais modestas.
Muito menos teria essa atividade levado um milênio para se expandir para
o Oriente Médio, e dois para o restante do planeta.
Deve, portanto, existir uma diferença profunda e insanável
entre a filosofia e as interrogações espontâneas que ocorrem a adultos e
crianças em toda parte, simulando “questões filosóficas”. Essa diferença é a
seguinte: a filosofia, quando surge na Grécia e tal como se desenvolve até
hoje, não consiste em simplesmente pensar sobre essas questões, mas em refletir
metodicamente sobre o conjunto das respostas existentes, surgidas da especulação
espontânea, das tradições e mitos religiosos, das obras literárias ou de
qualquer outra fonte publicamente conhecida. Foi por isso que Julián Marías
disse que a fórmula esquemática de toda e qualquer afirmação filosófica não é
simplesmente “A é C”, mas “A não é B e sim C”, e Benedetto Croce ensinou que
para compreender uma filosofia é preciso saber a quê ela se opõe.
Para que o filósofo reflita sobre as respostas correntes, é
preciso que elas existam e que ele as conheça. Três requisitos são necessários
para que essas condições se cumpram: (1) é preciso que as crenças básicas da
comunidade tenham evoluído até poder expressar-se em fórmulas verbais estáveis,
conhecidas por toda a população adulta; (b) é preciso que essas fórmulas tenham
se tornado problemáticas, entrando em choque umas com as outras ou com a
realidade da experiência, para que possa surgir a simples idéia de fazer delas
o objeto de uma reflexão organizada; (3) é preciso que o filósofo as tenha
estudado bem, isto é, domine em máxima medida possível a cultura do seu tempo e
da sua sociedade, de modo a poder introduzir na discussão um upgrade
diferencial e decisivo: a análise filosófica.
Aristóteles, é claro, diria que a diferença específica entre
a filosofia e as especulações espontâneas de crianças e adultos não está na
matéria ou assunto de que tratam, mas na forma da análise filosófica, que se
distingue daquelas mais ou menos no mesmo sentido em que a ciência da zoologia
se distingue de uma visita ao jardim zoológico. Aliás foi o próprio Aristóteles
quem criou o primeiro jardim zoológico, e com certeza não confundia a
curiosidade dos visitantes com as
investigações zoológicas que ele e seus estudantes empreendiam com base no
mesmo material ali observado.
A filosofia, enfim, só aparece quando cumpridas determinadas
condições culturais, tanto na sociedade em geral quanto na mente do filósofo
individual. A primeira tem de estar madura para aceitar uma discussão sobre
suas crenças mais queridas, a segunda tem de haver adquirido conhecimentos suficientes
para que sua voz reflita a das correntes culturais existentes e não somente
suas impressões pessoais isoladas.
Por isso foi que Hegel afirmou: “A ave de Minerva só levanta
vôo ao entardecer.”
Pessoas com uma cultura filosófica e histórica deficiente ou
nula podem-se deixar confundir pela semelhança material entre a pergunta de uma
criança e a questão filosófica formulada por um pensador maduro, mas a
diferença entre elas é grande ao ponto de que a primeira diz algo por si mesma,
podendo reaparecer idêntica em milhares de cérebros infantis (ou mesmo
adultos), ao passo que a segunda nada significa fora da “ordem das razões”, o
lugar preciso que ocupa no esquema total do pensamento daquele filósofo em
particular.
Nesse sentido, todo estudante de filosofia tem a obrigação
de saber que não existem propriamente “questões filosóficas”, mas questões que,
sob certas circunstâncias muito complexas, emergem do terreno geral da
curiosidade humana e, graças a um tratamento muito especial que recebem, se
tornam questões filosóficas.
Por isso mesmo eu disse não ser coincidência que a idéia
besta da “filosofia para crianças”, malgrado toda a óbvia dificuldade prática
de realizá-la (v. "Filósofos a granel" e "Rompendo o hábito" ), ressurja de novo e de novo,
como uma obsessão incurável, num país que tem pouquíssimos filósofos, mesmo
ruins, e onde os bons se contam nos dedos das mãos. A proposta invariavelmente
vem de pessoas cujas realizações no campo da filosofia são inexistentes, cujos
conhecimentos filosóficos não chegam ao nível dos de um estudante secundarista
na França ou nos EUA e cuja cultura geral não permite sequer participar
utilmente de discussões jornalísticas, quanto mais filosóficas. Jogam um ovo para
o ar e acreditam que é o vôo da ave de Minerva.
Fonte: Mídia Sem Máscara
Nenhum comentário:
Postar um comentário