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SEM SURPRESA-Moro,à sombra de si mesmo:decepcionado
com o STF,mas não surpreso.Processos
contra “
figuras poderosas” não correm sem reações
(Pablo Jacob/Agência o Globo)
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A estratégia do
juiz da Lava-Jato, inspirada no sucesso da faxina contra a corrupção na Itália
dos anos 90, estava apoiada em três pilares: prisão, delação e divulgação.
Vinha funcionando extraordinariamente bem, mas a libertação dos empreiteiros
rompe o “círculo virtuoso”
Sergio Moro é um
estudioso e admirador da Operação Mãos Limpas, a gigantesca faxina contra a
corrupção realizada na Itália na década de 90, que começou investigando um
bagre miúdo com 4.000 dólares de propina no bolso e terminou capturando 1.300
empresários e parlamentares. Em 2004, Moro publicou cinco páginas numa revista
jurídica analisando a operação italiana. Hoje, o texto circula na rede. Sob o
título "Considerações sobre a Operação Mani Pulite", Moro descreve o
que, em sua opinião, explica o estrondoso sucesso da ação italiana. É a
criteriosa e sistemática aplicação de uma estratégia em três pilares: prisão,
delação, divulgação.
Mesmo antes da
condenação, a prisão dos corruptos - explica Moro - é fundamental para marcar a
"seriedade do crime" e mostrar que, até "em sistemas judiciais
morosos", a Justiça pode funcionar. A delação, por sua vez, é a única
forma de chegar aos mandantes de uma organização criminosa. Moro cita o
raciocínio de um dos investigadores italianos: "A corrupção envolve quem
paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir jamais". A
divulgação, última perna do tripé, é uma forma de garantir o apoio da opinião
pública às investigações. Os italianos, escreveu Moro, fizeram "largo uso
da imprensa" com esse fim. Sintetizando sua análise, Moro afirma que o
tripé criou um "círculo virtuoso" na Itália: "As prisões,
confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo
virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos
resultados obtidos pela Operação Mani Pulite".
Desde o início do
ano passado, quando a Lava-Jato saiu do papel, o juiz Sergio Moro, 43 anos,
estava pondo em prática a receita italiana e, desde a semana passada, quando os
ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram libertar os nove empreiteiros,
sua estratégia ruiu. Sem a prisão de alguns dos maiores expoentes da
organização criminosa que assaltou a Petrobras, é improvável que haja novos
acordos de delação e, sem novos acordos, será escassa a produção de novidades
capazes de garantir o interesse da opinião pública. Moro, dizem seus
interlocutores mais próximos, ficou decepcionado com a decisão do STF, embora
tenha achado exemplar o voto do ministro Celso de Mello, que queria manter os
nove na cadeia por entender que a prisão preventiva se sustentava em
"fatos impregnados de inquestionável relevo jurídico". Mas Moro não
ficou surpreso com o revés. Ele mesmo escreveu, ainda a propósito da operação
italiana: "É ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra
figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser
conduzidos normalmente, sem reações".
As ações penais da
Lava-Jato vão continuar caminhando do modo como caminhavam antes da prisão dos
empreiteiros. Nada impede que, a qualquer hora, o tripé de Moro volte a se
erguer. Basta um novo motivo para prender um tubarão, quem sabe uma nova
confissão de um empreiteiro vestindo tornozeleira eletrônica em casa. Ou, até
mesmo, a entrada em cena de novos suspeitos de empreiteiras que constam do
cartel da corrupção, como Odebrecht e Andrade Gutierrez, mas que foram pouco
incomodados até agora. O apoio da opinião pública, a julgar pelas pesquisas e
pelas ruas, está garantido. Mesmo com tudo isso, será mais complicado reativar
o círculo virtuoso.
Até a semana
passada, as decisões de Moro vinham se mantendo contra o arsenal de vários dos
mais calibrados escritórios de advocacia do país. Ao contrário de outro magistrado
que se tornou celebridade nacional, o ex-ministro Joaquim Barbosa, Moro é
considerado um juiz de alta competência técnica. Já era assim quando cursou
direito na Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, onde ganhou fama de
"geniozinho". Continuou desse jeito no seu estágio no escritório do
tributarista Irivaldo Joaquim de Souza, que tem meio século de experiência e só
elogios para Moro: "Era um estagiário brilhante". E seguiu dessa
forma quando prestou o rigoroso concurso para juiz federal em 1996, no qual
tirou um honroso segundo lugar. Sua competência será posta à prova, mais uma
vez, para manter a Lava-Jato de pé.
Além do talento, há
outra qualidade que não falta a Moro: coerência. É antiga a sua opinião de que
a prisão preventiva - como à que estiveram submetidos os nove empreiteiros
soltos agora - não viola a presunção da inocência. Também é antigo seu
interesse pela delação premiada, instituto relativamente recente na ordem
jurídica brasileira. Chegou a traduzir um longo artigo do juiz Stephen Trott,
de uma corte de apelações da Justiça federal dos Estados Unidos, publicado em
1996. Nele, Trott dá conselhos minuciosos sobre as vantagens e as armadilhas de
obter o apoio de uma testemunha criminosa, seja como delator, informante ou
cúmplice. Em sua tradução, Moro deixa evidente - em suas notas de rodapé ou nas
passagens que fez questão de grifar por conta própria - que o cerne da questão
não é saber se o criminoso deve ser usado como delator, mas quando e como.
Na sua trajetória
profissional, talvez o dado mais forte seja seu sentido de missão,
especialmente no que diz respeito a higienizar a democracia brasileira,
amputando o braço da corrupção. Há cinco anos, Moro participou de um movimento
pela renúncia dos diretores da Assembleia Legislativa no Paraná, suspeitos de
grossa corrupção. A campanha fracassou, mas revelou-lhe que um juiz federal
podia fazer mais do que assinar sentenças. A própria Operação Mãos Limpas
levou-o a traçar um paralelo com o Brasil. Moro acha que as "condições institucionais"
que permitiram a limpeza italiana também estão maduras entre nós. Escreveu ele:
"Assim como na Itália, a classe política não goza de prestígio junto à
população, sendo grande a frustração pela quantidade de promessas não cumpridas
após a restauração democrática".
No balanço da
Lava-Jato, Moro cometeu poucos erros. Em fevereiro, tentou puxar para o seu
controle o caso de corrupção que envolve a ex-governadora Roseana Sarney, do
Maranhão. Perdeu. Depois, pediu a prisão preventiva de empreiteiros cujos
representantes haviam tido uma audiência na penumbra com o ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo. Moro entendeu que conspiravam para obstruir a Justiça.
Também perdeu. No caso mais recente, prendeu a cunhada de João Vaccari,
ex-tesoureiro do PT, ao confundi-la com a irmã. Depois de sete dias em cana, a
cunhada do ex-tesoureiro foi libertada, mas Moro não teve a grandeza de admitir
que errou de pessoa, escapulindo pela tangente ao dizer que perdera a
"certeza" de quem era quem. Agora, três dos cinco ministros do STF
disseram que não havia justificativa para manter os nove presos, derrubando uma
decisão de Moro. Juízes erram, cometem injustiça, dobram a lei. O fundamental é
que sejam movidos, sempre, pelo espírito de acertar, fazer justiça e garantir
as proteções da lei.
Nada na carreira de
Moro autoriza a pensar que seu espírito esteja no lugar errado. O tripé que
montou é ousado, mas vem sendo executado com zelo para não violar os direitos
dos investigados. É o ensinamento de um dos seus ídolos do mundo jurídico, o
juiz americano Learned Hand, que nunca chegou à Suprema Corte mas é mais
celebrado do que muitos que lá chegaram. Bem-nascido e erudito, Hand escrevia
com brilho e verve. Jamais se preocupou se suas decisões desagradariam a gregos
ou troianos, e tinha respeito pétreo pela liberdade de expressão. Trabalhou
como juiz federal por mais de meio século e morreu aos 89 anos, em 1961. Numa
decisão que lhe valeu a hostilidade da imprensa em plena Guerra Fria, Hand
inocentou uma funcionária do Ministério da Justiça que fora condenada a quinze
anos de prisão depois que o governo americano descobriu que ela furtara
segredos de defesa para repassá-los aos soviéticos. Mas a descoberta fora feita
através de um grampo telefônico ilegal. Numa carta a um dos seus críticos, Hand
deixou uma lição imortal: "Não é desejável condenar um réu, mesmo que seja
culpado, quando, para fazê-lo, é preciso violar as regras que asseguram a
liberdade de todos nós".