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José Roberto Afonso, economista do Ibre:
'Pedaladas não são
crime'(Divulgação/VEJA)
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Para José Roberto Afonso, um dos autores da Lei de
Responsabilidade Fiscal, o que o governo fez foi muito mais sério do que
atrasar repasses - ou "pedalar"
Do dia para a noite, um jargão econômico que até pouco tempo
era usado apenas por especialistas em contabilidade ganhou relevância nacional.
O problema é que foi pelo motivo errado. As chamadas 'pedaladas fiscais' são
atrasos em pagamentos feitos pelo governo, que se intensificaram durante a
primeira gestão de Dilma Rousseff. Demonstram uma gestão falha de recursos
públicos, mas não são crime. Coisa bem diferente ocorre quando bancos públicos
assumem, nas datas devidas, despesas do Tesouro - sem ter recebido o dinheiro
para tal. Isso configura empréstimo, e é vedado pela lei brasileira. Quem
atenta para a diferença é o economista José Roberto Afonso, professor do
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pesquisador do Instituto
Brasileiro de Economia (Ibre) e um dos autores da Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), sancionada no governo de Fernando Henrique Cardoso.
A confusão começou depois que o Tribunal de Contas da União
(TCU) identificou que os bancos públicos arcaram com as despesas de programas
como o Bolsa Família, justamente porque o Tesouro atrasava os repasses devidos
às instituições. A oposição se movimenta em torno do tema para tentar construir
um argumento jurídico que sustente um pedido de investigação da presidente
Dilma. Já o governo se defende dizendo que as 'pedaladas' não devem ser
investigadas porque sempre existiram. Afonso concorda que os atrasos são corriqueiros
na gestão pública. Mas não os empréstimos da Caixa ao Tesouro. "A
discussão está fora de foco. O governo fez justamente o contrário. O pagamento
foi feito, em dia. Só que não foi feito pelo governo, e sim por terceiros. Por
bancos como a Caixa e o Banco do Brasil. Esse é o centro da decisão do
TCU", afirma.
O que são as 'pedaladas fiscais'? Antes de tudo, o termo
"pedalada fiscal" não é o mais apropriado para definir o que está
acontecendo. Essa falta de precisão confunde os leigos. E essa confusão é
explorada por aqueles que precisam defender o indefensável. Pedalar é o jargão
utilizado por economistas para se referir a atrasos de pagamento. É algo
normal, todo governo faz e em todo lugar do mundo. E não remonta somente a
Fernando Henrique Cardoso. Se alguém pesquisar, vai ver que desde que Pedro
Cabral chegou nestas bandas e Tomé de Souza montou o primeiro governo de
colônia, isso deve existir no Brasil. Essa questão das pedaladas faz perder o
foco. O que o governo fez foi justamente o contrário disso.
Como assim? Se o Tesouro deixou para pagar uma despesa numa
data posterior àquela em que devia, isso, por si só, não configura crime.
Pagamentos foram postergados até o ano passado como uma forma de melhorar
artificial e temporariamente o resultado primário, que é a economia que o
governo faz anualmente para pagar os juros da dívida. Esse governo federal
acumulou tantos compromissos de gasto, mais de 200 bilhões de reais, que a
expressão "restos a pagar" perdeu o sentido. Deixou de ser uma
exceção e se tornou regra. Isso é má gestão, é política fiscal arcaica. Mas, em
si, não configura crime fiscal. O debate que importa, no entanto, é outro:
algum banco pagou despesas do Tesouro, sem que o Tesouro lhe houvesse repassado
recursos para tal finalidade específica? O Tribunal de Contas da União (TCU)
apurou evidências nesse sentido e aguarda explicações das autoridades envolvidas.
Isso é empréstimo e não pode ocorrer quando o banco pertence ao governo que
ordenou o pagamento.
Por que um banco não pode pagar as despesas de seu principal
acionista? Porque o dinheiro não é dele, e sim dos depositantes. Imagine uma
situação como essa numa empresa privada. O banqueiro, ao sair para almoçar,
passa pelo caixa do banco e pega um pouco de dinheiro dos correntistas para
consumo próprio? É claro que não. Isso não pode acontecer em nenhum banco, em
nenhum lugar do mundo. É crime pela Lei do Colarinho Branco. Num banco público,
a situação é mais grave ainda porque há outra lei, a de Responsabilidade
Fiscal, que proíbe expressamente que haja empréstimo do banco federal para a
União. Sobre isso, nem a Advocacia-Geral da União (AGU) discorda. O que ela tem
alegado nos últimos dias é que, ao pagar despesas do Tesouro, os bancos
públicos fizeram 'prestação de serviços'.
Esse argumento é pertinente? Se essa defesa for aceita,
então todos os correntistas de todos os bancos oficiais poderão pleitear o fim
da cobrança de juros no cheque especial. No dia em que vencerem suas contas, o
banco deverá pagá-las mesmo que você não tenha saldo. Você o ressarcirá lá na
frente, mas sem pagar juros, por essa "prestação de serviço". Alguém
acha que isso existe? Que outros contratos iguais a esse existem no Banco do
Brasil ou na Caixa? Tenho certeza que não. Aliás, tenho uma questão paralela.
Será que nessas estranhas operações foram cobrados e pagos os impostos que
incidem serviços bancários? Os ministros que defendem essa tese da prestação de
serviços deveriam esclarecer esse ponto.
Por que a LRF foi elaborada com esse artigo específico que
proíbe os empréstimos? A motivação da LRF era evitar a repetição da crise dos
bancos estaduais. Nos Estados, era comum essa prática de empréstimo dos bancos
à administração. Jamais se pensava que aquelas práticas, irresponsáveis tanto
do ponto de vista fiscal, como do ponto de vista bancário, viessem a se repetir
no plano federal. O projeto de lei foi elaborado entre 98 e 99, quando se
estava concluindo o processo de reestruturação dos bancos estaduais, inclusive
o programa do PROER, que custou caro, mas teve resultados reconhecidos até em
auditorias realizadas posteriormente no governo Lula. Para não repetir erros e
custos, se colocou a vedação geral, de que proprietários não devem se financiar
junto a seus bancos. A proposta foi aprovada pelo Congresso, sem nenhum
questionamento.
Se pedaladas são práticas corriqueiras, o que motivou o TCU
a abrir um processo? A imprensa noticiou no ano passado que a Caixa pediu à AGU
para instalar uma câmara de arbitragem porque se sentia prejudicada pelo fato
de, a partir de 2013, ter começado a pagar benefícios, como do bolsa-família e
do seguro-desemprego, sem ter recebido os recursos correspondentes do Tesouro.
O representante do Ministério Público junto ao TCU abriu uma representação para
que fossem apurados os fatos e os técnicos do Tribunal elaboraram um parecer
impecável tecnicamente, com evidências concretas de que pagamentos foram feitos
sem cobertura financeira e sem os devidos registros.
Como essas operações de valores altíssimos foram feitas sem
que ninguém percebesse? Cabem às autoridades chamadas pelo TCU a tarefa de
explicar. O Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal
(Siafi), onde estão registradas as contas do Tesouro, tampouco mostra nada
sobre isso. Nesse contexto, mais até do que regras fiscais, foram
desrespeitadas regras financeiras e bancárias básicas. É inacreditável que o
Banco Central não tenha visto o que ocorria. O precedente é gravíssimo, pois
como o BC poderá aplicar uma interpretação diferente se uma situação como essa
acontecer com bancos privados? O BC exerce a supervisão do sistema bancário e
deveria ter sido informado de tudo isso, até para exigir controles gerenciais
paralelos sobre todo o relacionamento de bancos com governos e também com seus
controladores. Os dirigentes dos bancos, bem como seus conselheiros fiscais e
auditorias externas. também deveriam se manifestar. Guardadas as devidas
proporções, não fica muito distante do caso da Petrobras. Diferentemente da
estatal, no caso dos bancos públicos, há balanço. Só que ele não revela clara
ou objetivamente toda a extensão das transações entre o banco federal e o
Tesouro Nacional.
Diante do amplo número de envolvidos e dos altos cargos que
ocupam, são grandes as chances de as acusações não darem em nada? Acredito e
espero que não. Até aqui, muita coisa já aconteceu: a imprensa fez o papel de
maior órgão de controle social do país, quando denunciou as operações no ano
passado, e as instituições responsáveis pelo controle formal, o TCU e o
Ministério Público, abriram uma investigação e a estão conduzindo com a maior
acuidade técnica possível, sempre com dúvidas e denúncias bem fundamentadas.
Tenho certeza que o Ministério Público Federal (MPF), se entender que é o caso,
com base na técnica e sem pressão política, levará à frente mais esse caso,
como outros em que vem trabalhando.