Coerentemente, o manifesto dos bacharéis, na forma e no
conteúdo, é uma sequência de exumações da fórmula aperfeiçoada por Márcio para
defender o indefensável. À falta de munição jurídica, seu tresoitão retórico
alvejava a verdade com tapeações, falácias e chicanas. Em artigos, entrevistas
ou discurseiras, ele primeiro descrevia o calvário imposto a outro cidadão
sem culpas por policiais perversos, promotores desalmados e juízes sem coração.
Depois, fazia o diabo para absolver culpados e condenar à execração perpétua os
defensores da lei. Foi o que fizeram os parteiros do manifesto abjeto.
Os pupilos hoje liderados por um codinome famoso ─ Kakay ─
certamente guardam cópias do texto do mestre publicado na Folha em
junho de 2012. “Serei eu o juiz do meu cliente?”, perguntou Márcio no título do
artigo que clamava pela imediata libertação do cliente Carlinhos Cachoeira (”
Carlos Augusto Ramos, chamado de Cachoeira”, corrigiu o autor). “Não o
conhecia, embora tivesse ouvido falar dele”, explicou. Ouviu o suficiente para
cobrar R$15 milhões pela missão de garantir que o superbandido da vez envelhecesse
em liberdade.
A pergunta do título foi reiterada no quinto parágrafo:
“Serei eu o juiz do meu cliente?” Resposta: “Por princípio, creio que não. Sou
advogado constituído num processo criminal. Como tantos, procuro defender com
lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”. Conversa fiada,
ensinara já em outubro de 1944 o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto, num
trecho da carta endereçada ao amigo Augusto Frederico Schimidt e
reproduzida pela coluna. Confira:
“O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser
o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de
tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável
em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça
está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição”.
“Não há exagero na velha máxima: o acusado é sempre um
oprimido”, derramou-se Márcio poucas linhas depois. “Ao zelar pela
independência da defesa técnica, cumprimos não só um dever de consciência, mas
princípios que garantem a dignidade do ser humano no processo. Assim nos
mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida, professamos defender. Cremos
ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e
democrática de nosso país”.
Com quase 70 anos de antecedência, sem imaginar como seria o
Brasil da segunda década do século seguinte, Sobral Pinto desmoralizou esse
blá-blá-blá de porta de delegacia com um parágrafo que coloca em frangalhos
também a choradeira dos marcistas voluntariamente reduzidos a carpideiras de
corruptos confessos. A continuação da aula ministrada por Sobral pulveriza a
vigarice:
“A advocacia não se destina à defesa de quaisquer
interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se
sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa. O
advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se
dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma consciência
escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça, incumbindo-lhe, por
isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não discutam aqueles casos
nos quais não lhes assiste nenhuma razão”.
“A pródiga história brasileira dos abusos de poder
jamais conheceu publicidade tão opressiva”, fantasiou o artigo na Folha.
“Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais.
(…) Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação.
(…) Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela
intolerância do apedrejamento moral. Dia após dia, apareceram diálogos
descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira
do ódio generalizado”.
Muitos momentos do manifesto que parecem psicografados por
Márcio. Onde o mestre viu fogueiras do ódio, os discípulos enxergaram uma
Inquisição à brasileira. Como o autor do artigo da Folha, os
redatores do documento se proclamam grávidos de indignação com “o menoscabo
à presunção de inocência (…), o vazamento seletivo de documentos e informações
sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração
pública dos réus e a violação às prerrogativas da advocacia.
Sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfava num tribunal, a
Justiça sofria mais um desmaio, a verdade morria outra vez, gente com culpa no
cartório escapava da cadeia, crescia a multidão de brasileiros convencidos de
que aqui o crime compensa e batia a sensação de que lutar pela aplicação
rigorosa das normas legais é a luta mais vã. A Lava Jato vem mostrando ao país,
quase diariamente, que ninguém mais deve imaginar-se acima da lei.
Neste começo de 2016, todo gatuno corre o risco de descobrir
como é a vida na cadeia. O juiz Sérgio Moro, a força-tarefa de procuradores e
os policiais federais engajados na operação desafiaram a arrogância dos
poderosos inimputáveis ─ e venceram. O balanço da Lava Jato divulgado em
dezembro atesta que, embora a ofensiva contra os corruptos da casa-grande
esteja longe do fim, o Brasil mudou. E mudou para sempre.
Todo réu, insista-se, tem direito a um advogado de defesa.
Mas doutor nenhum tem o direito de mentir para livrar o acusado que contratou
seus serviços de ser punido por crimes que comprovadamente cometeu. O advogado
é o juiz inicial da causa. Não pode agir como comparsa de cliente bandido.
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