
Nem mesmo o
enriquecimento pessoal ilícito pode ser alegado seriamente contra ele, pelos
cânones da moral revolucionária.
Na peça teatral Processo e Morte de Stalin, de Eugenio Corti –
escritor da estatura de um Manzoni ou de um Tolstoi --, o ditador soviético
convida alguns de seus ministros e assessores para um jantar na sua casa de
campo, na intenção de prendê-los e sacrificá-los num dos seus célebres
“expurgos”. Eles descobrem o plano e decidem virar o jogo. Desarmam os guardas
da casa e já estão quase liquidando com um tiro na nuca o velho companheiro,
quando surge a idéia de lhe dar uma última oportunidade de se explicar perante
o tribunal do materialismo histórico. O que se segue é uma obra-prima de
argumentação dialética, na qual Stalin logra demonstrar, ante os olhos
estupefatos de seus executores, que os crimes que perpetrou não foram jamais
traições aos ideais revolucionários, mas sim a realização fiel, exata e genial
dos princípios do marxismo-leninismo nas circunstâncias históricas dadas. Os
conspiradores admitem que ele tem razão, mas resolvem matá-lo mesmo assim.
Para confirmar o dito de Karl Marx de que as tragédias históricas se repetem
como farsas, alguém deveria escrever uma peça similar sobre o sr. Luiz Inácio
Lula da Silva. Qualquer estudioso de marxismo que tenha feito a sua lição de
casa – um tipo que, admito, é uma raridade absoluta tanto na esquerda quanto na
direita hoje em dia --, tem a obrigação de perceber que, do ponto de vista da
estratégia revolucionária, Lula nada fez de errado. Ao contrário. Seguiu a
receita fielmente, com um fino senso dialético das condições objetivas, dos
momentos e das oportunidades, logrando realizar o quase impossível: salvar da
extinção o movimento comunista latino-americano e colocá-lo no poder em uma
dúzia de países. Fidel e Raul Castro jamais puseram isso em dúvida. As próprias
Farc reconheceram-no enfaticamente, na carta de agradecimento que enviaram ao
XV aniversário do Foro de São Paulo. Mais ainda: no seu próprio país, Lula foi
o líder e símbolo aglutinador da “revolução cultural” que deu aos esquerdistas
o completo controle hegemônico das discussões públicas, ao ponto de que
praticamente toda oposição ideológica desapareceu do cenário, sobrando, no
máximo, as críticas administrativas e legalísticas que em nada se opunham à
substância dos planos revolucionários. Isso nunca tinha acontecido antes em
país nenhum. O próprio Lula, consciente da obra realizada, chegou a celebrar a
mais espetacular vitória ideológica de todos os tempos ao declarar que, na
eleição presidencial de 2002, o Brasil havia alcançado a perfeição da democracia:
todos os candidatos eram de esquerda.
É fácil chamá-lo de ladrão, de vigarista, do diabo. Mas o fato é que essas
críticas se baseiam num critério de idoneidade administrativa que só vale no
quadro da “moral burguesa” e que, em toda a literatura marxista, não passa de
objeto de zombaria. O que aconteceu foi apenas que Lula, como todo agente do
movimento comunista internacional que não chega ao poder por meio de uma
insurreição armada e sim por via eleitoral, como foi também o caso de Allende
no Chile, teve de fazer alianças e concessões – inclusive e principalmente ao
vocabulário da “honestidade burguesa”—com a firme intenção de jogá-las fora tão
logo começassem a atrapalhar em vez de ajudar. Tanto ele quanto seu fiel
escudeiro Marco Aurélio Garcia foram muito explícitos quanto a esse ponto: ele,
em entrevista a Le Monde; Garcia, a La Nación. Mover-se
no meio das ambigüidades de uma conciliação oportunista entre as
exigências estratégicas do movimento revolucionário e os interesses objetivos
dos aliados capitalistas de ocasião é uma das operações mais delicadas e
complexas em que um líder comunista pode se meter. Mas, pelo critério dos
resultados obtidos – o único que vale na luta política --, o sucesso do Foro de
São Paulo é a prova cabal de que Lênin, Stálin ou Fidel Castro, no lugar
de Lula, não teriam feito melhor.
Nem mesmo o enriquecimento pessoal ilícito pode ser alegado seriamente contra
ele, pelos cânones da moral revolucionária. De um lado, em todos os clássicos
da literatura comunista não se encontrará uma única palavra que sugira, nem
mesmo de longe, que o compromisso de fachada com a “moral burguesa” deva ser
cumprido literalmente como guiamento moral da pessoa do líder, ou mesmo do
menor dos militantes. De outro lado, é fato histórico arquicomprovado que todas
as estrelas maiores do cast comunista enriqueceram
ilicitamente – Stalin, Mao, Fidel Castro, Pol-Pot, Allende, Ceaucescu --, sendo
uma norma tácita que tinham até a obrigação de fazê-lo, de preferência com
contas na Suíça, para ter os meios de resguardar-se e reiniciar a revolução no
exterior em caso de fracasso do projeto local. O próprio Lênin só não chegou a
poder desfrutar do estatuto de nababo porque semanas após a vitória da
Revolução a sífilis terciária, cumprindo seu prazo fatal, o reduziu a um
farrapo humano. Como dizia Yakov Stanislavovich Ganetsky (também chamado
Hanecki), o mentor financeiro de Lênin, “a melhor maneira de destruirmos o
capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas”.
O movimento revolucionário sempre viveu do roubo, da fraude, do contrabando,
dos seqüestros, do narcotráfico e, nos países democráticos onde chegou ao
poder, do assalto aos cofres públicos. Lula não inventou nada, não inovou em
nada, não alterou nada, apenas demonstrou uma habilidade extraordinária em
aplicar truques tão velhos quanto o próprio comunismo.
No tribunal da ética revolucionária, portanto, nem uma palavra se pode dizer
contra ele. As críticas só podem provir de três fontes:
a) Reacionários empedernidos, frios, desumanos e incompreensivos como o autor
destas linhas, que não condenam Lula por desviar-se do movimento revolucionário
e sim por permanecer fiel ao esquema de destruição civilizacional mais cínico e
diabólico que o mundo já conheceu.
b) Aliados burgueses insatisfeitos de que ele viole de maneira demasiado
ostensiva as regras da moral capitalista, sujando a reputação de quem só quer
ajudá-lo.
c) Esquerdistas com precária formação marxista, que não entendem a natureza puramente
tática da retórica burguesa de idoneidade administrativa e imaginam – ou se
esforçam para imaginar diante do espelho -- que a roubalheira seja uma traição
aos ideais revolucionários.
Os primeiros são os únicos que dizem o português claro: a roubalheira petista
não é um caso de “corrupção” igual a tantos outros que a antecederam, mas é um
plano gigantesco de apropriação do dinheiro público para dar ao movimento
comunista o poder total sobre o continente.
Os segundos, ideologicamente castrados, imaginam poder vencer ou controlar o
comunopetismo mediante simples acusações de “corrupção” desligadas e isoladas
de qualquer exame da sua retaguarda estratégica. Inclui-se aí toda a grande
mídia brasileira, com a exceção de alguns colunistas mais ousados como Reinaldo
Azevedo, Percival Puggina e Felipe Moura Brasil.
Os terceiros macaqueiam o discurso dos segundos na esperança de salvar a
reputação do movimento revolucionário mediante o sacrifício de uns quantos
“corruptos” mais visíveis. Nas suas mentes misturam-se, em doses iguais, a
falsa consciência, o fingimento histérico de intenções angélicas e o desejo
intenso de limpar com duas palavrinhas tardias uma vida inteira de serviços
prestados ao mal.
Não espanta a pressa obscena dos segundos em celebrar estes últimos como heróis
nacionais. Vêem neles uma ajuda providencial para tomar do parceiro incômodo o
controle da aliança sem ter de passar por anticomunistas, uma perspectiva que
os horroriza mais que o risco do paredón.
Publicado no Diário
do Comércio.
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