Por Jorge Maranhão
Há anos firmamos a
convicção de que tais iniciativas, por mais legítimas que sejam, não terão a
força necessária de mudar nossos miseráveis costumes políticos se não se
convergirem para o espaço público da mídia de modo unificado e simples, num
formato que privilegie mais os enunciados de propostas do que análises
profundas e dissertações eruditas. Pois é, sobretudo, na mídia que a corrupção
dos valores morais do imaginário social brasileiro confunde conceitos e
traveste de normalidade situações absolutamente anômalas. Se não entendemos a
diferença entre o valor intrínseco da vida e as chamadas “condições de vida” de
viés esquerdista, entre igualdade de oportunidades e igualdade social – que
traz oculta a negação das leis pela celebração de privilégios corporativos,
entre Estado e governos, entre legalidade e moralidade pública, entre Justiça e
justiça “social”, e principalmente entre responsabilidade política de todos, e
para além de responsabilidade social de empresas, responsabilidade civil
profissional, ou responsabilidade fiscal de governantes, não temos condições
mínimas de autonomia, de pensamento, de liberdade, enfim. Liberdade, aliás, que
de alteridade como manda a tradição filosófica, entre nós é trocada pela
liberdade de identidade, alheia e a despeito da lei.
Uma elite de
cidadãos conscientes e atuantes no Brasil tem a urgente necessidade de escolher
entre o paradigma hobbesiano do homem como lobo do homem ou a utopia
rousseauniana do bom selvagem! Ou seja, entre a ideia da tradição classicista
do pecado original – que confirma o livre arbítrio da liberdade da escolha
individual – e o romantismo do mito adâmico do homem puro e sem pecado, o qual
só se torna “mau” e “pecador” pela ação deletéria da sociedade. Se no primeiro
paradigma assumimos as consequências por nossas escolhas individuais como
cidadãos livres, tornando possível a transição de uma cultura de transgressão
para uma cultura de plena cidadania, no segundo modelo ideológico diluímos a
responsabilização penal para toda a sociedade tornando-nos todos cúmplices da
omissão política e transferindo cinicamente a culpa para as calendas de nossa
formação histórica ibérica ou para a fatalidade da generalização do povo sem
instrução elementar.
Urge a cada cidadão
mais consciente e atuante reconhecer a sua responsabilidade política diante da
verdadeira reforma cultural que o país deve enfrentar e que pode ser expressa
em três pontos principais: 1) a construção de um novo imaginário social na
mídia, sobretudo no que tange ao resgate de uma cultura política fundada em
valores morais, superando “a voz das ruas” meramente reivindicatórias pela voz
dos cidadãos responsáveis por propostas de políticas públicas consistentes; 2)
a defesa de instituições de Estado fortes e independentes, em detrimento direto
da burla do Estado-empresário, que garantam os valores constitucionais da vida,
da justiça, da propriedade e da liberdade; e 3) a maior qualificação do debate
público pela superação do dilema da alegada crise de gestão do setor público e
a crise de valores do setor privado, raiz do mau tempo econômico que
vivenciamos.
Hoje, sem sombra de
dúvida, esta é a agenda indeclinável da cidadania. Se a Educação tem patinado
ao longo das últimas décadas, e apresentado um viés doutrinário cada vez mais
coletivista e relativista; se a Justiça tem se mostrado lenta, pouco eficaz,
corporativista e o menos transparente dos poderes; e se a mídia não reconhece a
sua própria responsabilidade cívica – como manda, aliás, o artigo 221 da C.F.
sobre as premissas de sua concessão pública – diante da construção e difusão de
valores morais, caberá a esses cidadãos atuantes, uma verdadeira elite da
sociedade, os verdadeiramente melhores de nós, e não necessariamente os mais
afortunados, tomar para si esta inadiável tarefa.
Desde o marco
fundador da cidadania, a promulgação da Carta Magna na Inglaterra de 1215, até
os dias atuais, o que entendemos como cidadania vem evoluindo. Num primeiro
momento, a luta era por direitos sociais, expressa em filantropia e
assistencialismos, seja pelas razões e ação das Igrejas, seja pelas razões e
ação do Estado. Num segundo momento, a cidadania passa a ser vista como a
defesa da legalidade e das conquistas civis, e a própria urbanidade, ideário
iluminista que nos persegue até hoje. Mas ao longo do tempo, conforme essas
conquistas se consolidaram, a definição de cidadania avançou para se repensar a
relação entre cidadãos pagadores de impostos e eleitores, e aqueles eleitos
para postos no poder público. Cidadania não é mais apenas a defesa de direitos,
mas principalmente a compreensão de que a cada direito conquistado corresponde
o dever de fiscalizar a execução dos orçamentos públicos, de cobrar de
políticos e servidores a transparência e a moralidade pública inerente às
funções que desempenham, e de que se trabalhe para a independência e
valorização das instituições de Estado, a fim de se garantir efetivamente o
fortalecimento da democracia, os alegados direitos sociais e as oportunidades
iguais para todos. Por que as duas maiores revoluções culturais da humanidade
ocorridas nas últimas décadas assim exigem: diante da conscientização ambiental
sobre os limites de renovação dos recursos naturais do planeta e da abertura de
dados pela tecnologia da informação sobre o interesse realmente público da ação
dos governantes, o sentido da cidadania tem sido mais da ordem do dever
político do que da mera reivindicação populista de direitos sociais ilimitados.
Depois de trinta
anos de militância na mídia, estamos convencidos de que não superaremos nossa
cultura de transgressão e omissão políticas, o corporativismo de nossas
instituições jurídicas, as persistentes deficiências da qualidade de nosso
ensino público, a degradação global dos valores morais da família e das igrejas
e o imediatismo patrimonialista de nossa ação empresarial, sem um verdadeiro
choque de mídia, a exemplo do que já ocorreu em democracias mais maduras. É
urgente que nos reunamos numa só elite de cidadãos políticos as lideranças dos
mais variados segmentos preocupados com a crise ética que nos degrada a todos.
E isto só com uma grande campanha de mobilização nacional que capture e
divulgue o pensamento de uma elite de cidadãos atuantes, verdadeiros agentes de
cidadania que compreendem que controle social se faz com propostas objetivas e
eficientes de políticas públicas e com participação permanente no debate
público. Uma campanha mais cívica do que meramente publicitária, que nos
apresente a nós mesmos. Por que esses agentes existem, e são muitos. Assim como
suas propostas boas e inovadoras. Mas o que nos deprime, para além da recessão
econômica, é a nossa ressaca moral. Na verdade, um fenômeno de mídia resultante
de uma cobertura obsessiva e irresponsável de nossa miséria política, a
consagração de uma “opinião publicada” de uma decantada cultura de transgressão
a que somos fatalmente condenados por uma mera idiossincrasia doutrinária, uma
fixação mórbida pelo fracasso, um compromisso com a derrota por antecipação, um
arraigado complexo de vira-lata. Uma mídia vassala no acompanhar a chapa branca
do poder constituído e não a ação inovadora da cidadania constituinte.
Como dizemos aqui no
nosso Instituto A Voz do Cidadão: “Não basta aos cidadãos terem
responsabilidade civil. Não basta às empresas terem responsabilidade social.
Não basta aos governos terem responsabilidade fiscal. Para o país voltar a
crescer, é preciso o compromisso de todos para com a responsabilidade política,
expressão de uma verdadeira cultura de cidadania”.
Fonte: Clube Militar
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Jorge Maranhão é
mestre em filosofia pela UFRJ, dirige o Instituto de Cultura de Cidadania A Voz
do Cidadão.
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