Por Luiz Flávio
Gomes

Dilma e Lula, com o
propósito inequívoco de se perpetuarem no poder (a política é o meio de se
alcançar e de se manter no poder, dizia Maquiavel), tinham o domínio da
mais megalomaníaca organização criminosa que promoveu a ultrajante
corrupção ocorrida na Petrobras? Depois que escrevi sobre os 10
passos jurídicos para a prisão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), muitos
internautas pediram para abordar a questão jurídica da teoria do
domínio do fato (e sua eventual aplicação em relação aDilma e Lula).
Vamos por partes.
1. Mesmo que um
milhão de provas sejam obtidas (o que não é o caso, por ora),enquanto Dilma
estiver no exercício da presidência da República ela não pode ser
responsabilizada por atos estranhos às suas funções (investigada sim,
eu defendo, processada não). Não cabe contra ela, ademais, nenhum
tipo de prisãocautelar (antes da sentença final). Para se instaurar
qualquer tipo de processo contra ela (por crime comum ocorrido no exercício das
funções ou por crime de responsabilidade que permite o impeachment) é
preciso que 2/3 da Câmara dos Deputados admitam a abertura do processo. O
presidente da República, particularmente nas republiquetas cleptocratas, é o
político mais blindado (para se evitar mais instabilidades que as costumeiras).
2. E o Lula,
pode ser alcançado pela teoria do domínio do fato? Essa teoria foi criada pela
ciência penal (dela se fala desde o princípio do século XX) para definir quem
pode ser entendido como autor de um crime. A lei penal brasileira nada diz
expressamente sobre isso. A doutrina tradicional (até o começo do século XX,
sem nenhuma discussão) sempre considerou autor apenas quem pratica
diretamente a conduta descrita na lei penal (no homicídio, por
exemplo, autor é quem mata; no roubo, é quem subtrai a coisa ou constrange a vítima;
na evasão de divisas, quem promove o ato evasivo; na lavagem de dinheiro sujo,
quem realiza o ato de lavagem etc.).
3. Com Hegler, em
1915, essa velha teoria sofreu os primeiros abalos. O tema foi aprofundado por
Lobe, em 1933. De forma clara e didática foi Welzel (a partir do final da
década de 30) quem iniciou a transformação da doutrina clássica, afirmando
“autor de um crime é quem tem o domínio do fato, é quem pratica o fato
diretamente – o verbo descritivo do crime -, quem tem o poder de alterar o
seu curso e eventualmente interromper a sua trajetória. Tecnicamente, é autor
quem tem o domínio da ação típica (descrita pela lei em cada crime).
4. Essa teoria,
amplamente aceita desde o princípio, experimentou trêsdesdobramentos
doutrinários e jurisprudenciais (no mundo todo ocidental). O primeiro veio
com Claus Roxin que, em 1963, criou a teoria do domínio da organização
criminosa (com o propósito de
considerar também como autores dos crimes nazistas – não meros
participantes – os chefões que organizaram, planejaram e comandaram
as atrocidades determinadas por Hitler).
É autor,
portanto, não apenas quem tem o domínio direto do fato (domínio da ação verbal
do crime: quem mata, quem tortura etc.), senão também quem tem o
domínio organizacional de uma associação criminosa constituída fora do Estado
de Direito. Todos os comandantes de Hitler foram
considerados autores da ignominiosa tragédia nazista (não apenas
participantes).
5.
O segundo desdobramento da teoria do domínio do fato foi o seguinte:
é autor também quem tem o domínio funcional do fato, ou seja,
quem colabora funcionalmente para a execução do crime, mesmo sem
realizar diretamente a ação verbal descrita na lei. Por exemplo: quem segura e
imobiliza a vítima para que ela seja golpeada pelo executor direto do
homicídio. Fala-se aqui na teoria do domínio funcional do fato.
6.
A terceira (e última) derivação da teoria do domínio do fato é a
seguinte: é autor também (autor mediato) quem tem o domínio da vontade de
outras pessoas. Fala-se aqui na teoria do domínio da vontade de outras
pessoas (prevista no art. 20, § 2º, do Código Penal brasileiro). Um médico, querendo matar
seu inimigo que se encontra internado no hospital, prescreve um “remédio”
mortífero. O enfermeiro, que de nada desconfia, ministra a injeção letal e mata
o paciente. O autor (mediato) do homicídio é o médico, que usou o enfermeiro
como instrumento para a execução do crime. O médico, nesse caso, tem o domínio
da vontade de terceira pessoa. A ele cabe a responsabilidade penal pelo
assassinato, mesmo não tendo executado diretamente a injeção mortífera.
7. Originalmente a
contribuição de Roxin[1] versava sobre as organizações criminosas (como o
nazismo) constituídas fora do Estado de Direito. Na atualidade, não há
como não admitir a aplicação da sua teoria em relação a qualquer
organização criminosa, independentemente da sua origem (legal ou ilegal). O que
importa (para definir as responsabilidades dentro dela) é seu afastamento das
expectativas normativas fixadas pelo direito. Qualquer tipo de organização ou
corporação ou empresa ou partido político, a partir do momento que passa a
dirigir suas atividades (exclusivamente ou paralelamente) para o mundo do crime
(para a bandidagem), de forma estruturada e hierarquizada, deixa de ser fiel ao
direito, tornando-se um grupo pernicioso para a convivência social.
8. Não há nenhuma
dúvida, assim, que a teoria do domínio do fato (com todas as suas
três derivações) é teoricamente aplicável ao escândalo da Petrobras.
Todas as pessoas que planejaram, organizaram ou comandaram essa gigantesca
organização criminosa, mesmo não tendo praticado diretamente atos criminosos
(de fraude nas licitações, superfaturamento, dinheiro para o caixa 2, lavagem
de dinheiro nas “doações legais” etc.), podem e devem ser penalmente
responsabilizados. Nesse rol de possíveis implicados aparecem, sem sobra de
dúvida, os nomes de Dilma e do ex-presidente Lula, com uma diferença: como Lula
está fora da presidência, em relação a ele não incide aquela série de
restrições constitucionais que abordamos no item 1, supra.
9. Eu
particularmente tenho a expectativa de que Lula (e todos os demais implicados
no escândalo da Petrobras, independentemente da filiação partidária: PT, PMDB,
PP, PSDB etc.) venham a ser responsabilizados penalmente pelo que
fizeram. E quando suas penas ultrapassarem 8 anos, que sejam
mandados todos para a cadeia (para o regime fechado). De qualquer modo,
enquanto vigente o Estado de Direito, a teoria do domínio do fato exige
provas concretas para sua aplicação. O Brasil não é (ou não deveria ser)
uma oclocracia (governo das massas rebeladas que impõem sua vontade
mesmo contra as bases normativas do Estado de Direito). Por mais que seja
imprescindível um “bode expiatório” para lavar a alma das massas
rebeladas, o direito não pode ser aplicado de forma atropelada.
10. Nesse erro
incidiu o STF, no caso mensalão do PT (AP 470). Acertou em condenar todos os
réus contra os quais havia provas concretas. Acertou em mandar para
a cadeia os condenados ao regime fechado ou semiaberto. Tecnicamente,
no entanto, caiu numa armadilha. O Procurador Geral disse que não tinha
provas concretas contra os “mandantes” de alguns crimes (incluindo nessa lista
o José Dirceu). O STF, que ainda não contava com o instituto da delação
premiada naquele tempo, criou (inventou) um quarto desdobramento da teoria
do domínio do fato. Inventou a “teoria do domínio da posição de comando”, ou
seja, quem tem posição de comando deve ser também responsabilizado como
autor. Isso foi duramente criticado pelos discípulos brasileiros de Claus
Roxin (Luís Grego e Alaor Leite, v. G.).
E com razão. Pura
responsabilidade penal objetiva (que foi banida do direito penal por uma porta
e está retornando pela janela). Puro direito penal de autor (logo, do
“inimigo”). Nesse erro o STF não deveria recair novamente. Agora, com a
delação premiada, está facilitada a colheita das provas. Dentro das regras do
Estado de Direito é possível tirar de circulação do cenário cleptocrata
brasileiro pelo menos os seus principais protagonistas.
11. Lula, Dilma,
Renan Calheiros, Eduardo Cunha, Collor de Mello, Sérgio Guerra (se tivesse
vivo) e todas as demais bandas podres do mundo financeiro, econômico,
político, administrativo e social devem arcar com
suas responsabilidades pelos desmandos praticados (e até levados para
a cadeia, se condenados ao regime fechado ou semiaberto). É hora de o
Brasil deixar de ser (no campo criminal) uma republiqueta cleptocrata
terceiro-mundista que garante a impunidade dos que pilham
desavergonhadamente o patrimônio público, para se perpetuarem no poder ou para
acumularem riquezas pessoais ilicitamente. Mas tudo tem que ser feito dentro
das regras do jogo (ou seja: do Estado de Direito). Erros processuais ou
técnicos não podem ser cometidos. Tampouco a responsabilidade penal pode ser
presumida (como lamentável e equivocadamente admitiu a
ministra Rosa Weber, no seu voto de condenação do Banco Rural no mensalão
do PT, na época assessorada pelo juiz Sérgio Moro). Modus in
rebus (em tudo há limites).
Fonte: Alerta Total
________________
Luiz Flávio
Gomes, Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente
do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Originalmente publicado no site
JusBrasil em 21 de julho de 2015.
Cf. ROXIN, Claus. Sobre la autoria y participación en derecho penal. Problemas Actuales de las Ciencias Penales y la Filosofia del Derecho, Buenos Aires, 1970, p. 60 e ss.
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