Como foi que o comunopetismo, após cinco décadas de hábil e continuado esforço
para conquistar a hegemonia segundo a receita de Antonio Gramsci, caiu do
sucesso avassalador para o fracasso total em apenas um dia, a data fatídica de
15 de março?
A resposta é simples: a receita gramsciana está errada. Não
funciona. Não vale nada, seja como análise da estrutura do poder, seja como
fórmula para conquistá-lo. Serve para infundir na esquerda um entusiasmo
temporário que termina por jogá-la num buraco ainda mais fundo do que aquele do
qual pareceu tirá-la no começo.
Tal como o marxismo clássico, o revisionismo de Bernstein e
Kautsky, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo, o maoísmo, a teoria
“foquista” de Régis Débray, o marxismo estrutural de Louis Althusser e não sei
mais quantas versões e remodelagens, o gramscismo nunca passou de mais uma na
série interminável de formas ilusórias, entre patéticas e mortíferas, de que o
marxismo se revestiu no empenho louco de dominar a realidade total e moldar o
curso da História.
Um traço essencial do pensamento esquerdista, cuja
disseminação nas escolas brasileiras basta por si só para explicar o decréscimo
de capacidade dos nossos estudantes, jornalistas, professores universitários e
intelectuais em geral, é aquele que, à falta de melhor nome, chamo “indução
mediada”.
No processo normal do conhecimento científico, o acúmulo de
fatos convergentes sugere uma constante, que então se consolida em hipótese
descritiva e deve ser testada no confronto com possíveis fatos divergentes antes
mesmo de adquirir o estatuto de “teoria”.
Na visão esquerdista das coisas, entre os fatos e a hipótese
descritiva já se interpõe toda uma teoria prévia – carregada, sempre, de
moralismo acusador – que não só obriga os fatos a ir na direção desejada, mas
obstaculiza, proíbe e impossibilita de antemão o confronto com os fatos
divergentes, ao ponto de que o simples fato de alegá-los se torna prova da
acusação embutida.
Notem bem: eu não disse que isso acontece de vez em quando,
que é um cochilo freqüente entre pensadores de esquerda. Disse que é um traço
essencial e infalível, presente mesmo nas criações mais altas da
intelectualidade esquerdista e sem o qual ela não poderia ser esquerdista de
maneira alguma.
A teoria interposta tem uma infinidade de versões, mas
pode-se resumir numa premissa simples e unívoca:Todos os males do mundo
provêm de que aqueles que estão no poder não somos nós (comunistas e afins).Levei
décadas para perceber que essa premissa, com toda a candura da sua estupidez
brutal, está presente em cada linha não só dos “clássicos do marxismo”, Marx,
Engels, Lênin, Stalin, Mao, mas dos militantes intelectuais marxistas mais
sofisticados, como Lukacs, Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser,
Gramsci. Retire-a, e tudo o que eles escreveram não passará de um imenso
e insensato non sequitur, tirando dos fatos conclusões que eles não
sustentam nem em sonhos. Ponha-a de volta, e tudo começará a fazer sentido, mas
não como teoria científica e sim como camuflagem pseudocientífica de uma
intransigente e psicopática reivindicação de poder.
O próprio Marx já confessou isso implicitamente na sua 11a. Tese
sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; o que
importa é transformá-lo.” Se o filósofo pode exercer a sua atividade
contemplativa longe dos altos escalões do poder e sem nenhuma intenção nem
mesmo de freqüentá-los, “transformar o mundo” requer, como primeiríssima
condição, o poder de fazê-lo. Tudo, absolutamente tudo no pensamento marxista,
marxiano, pró-marxista e marxistóide depende fundamentalmente dessa premissa,
sem a qual ele não poderia ser o que é.
Isso quer dizer que, mesmo ao falar de assuntos que estão
aparentemente a léguas de qualquer luta pelo poder – as tragédias de Ésquilo, a
arquitetura das catedrais ou a música de Mozart – o intelectual marxista (uso o
termo lato sensu) está sempre investigando a mesma questão ou série
de questões: Quem está no poder, como chegou lá, como podemos tirá-lo
de lá e ocupar o lugar dele?
Tudo, absolutamente tudo entre o céu e a terra, é examinado
sob esse prisma e somente sob ele. A variedade mesma dos assuntos que
interessam aos marxistas é a prova de que essa perspectiva obsessivamente
limitada e limitadora pode ser estendida a todos os objetos possíveis, já que
tudo pode ser útil para a conquista do poder da mesma maneira que tudo pode ser
meio ou obstáculo para a conquista de qualquer outro objetivo humano: a
felicidade, a salvação da alma, a glória de uma nação ou raça, a prosperidade
geral, a paz universal etc. etc. Tudo o que existe, sob qualquer modo que seja,
se torna então um instrumento de dominação, e todo o problema
consiste em saber como tomá-lo dos seus detentores passados e presentes e
entregá-los aos comunistas.
Imaginem, por exemplo, em quê se transforma, na perspectiva
marxista (repito: lato sensu), o estudo da linguagem.
Antonio Gramsci enfatiza que em muitas línguas o adjetivo
“bom” vem da mesma raiz que significa “rico” ou, como no latim, é ele próprio
um sinônimo de “rico”. O consensus bonorum omnium, “consenso
de todos os homens bons”, a que Cícero apela contra o sedicioso Catilina, não é
outra coisa senão a opinião dos ricos e poderosos, os membros do Senado, os optimates em
oposição aos populares.
É um fato. Mas Gramsci interpreta-o como prova de que a
linguagem é por excelência um instrumento da hegemonia, o controle do que a
sociedade pode ou não pode pensar. Na medida em que acredita que os ricos são
os bons, ela se sentirá inibida de agir contra eles.
Mas, se fosse assim, todas as palavras do idioma deveriam
enaltecer as virtudes dos ricos e vituperar os vícios dos pobres. Não poderia
existir, por exemplo, a palavra corruptio, que no uso romano
significava eminentemente induzir ao mal por meio de propinas – um modo de agir
que é próprio dos ricos e não está ao alcance dos pobres.
Nem poderia existir o verbo spolio, spoliare,
que, em contraste com outras acepções do verbo “roubar”, comosubripio, latrocinor, surrupio etc.,
designa eminentemente a espoliação do fraco pelo forte, do pobre pelo rico.
Se a linguagem fosse propriedade dos ricos e instrumento da
sua glória, toda palavra que por si insinuasse alguma coisa contra eles deveria
ser suprimida do vocabulário. Se não o é, é pela simples razão de que as
palavras não são consagradas no vocabulário dominante pela classe dominante,
mas pelos gramáticos e escritores, que tanto faz serem pobres ou ricos, assim
como pelo uso popular repetido, que se prolonga pelos séculos e transcende
quaisquer disputas momentâneas de poder.
“Bom” ser usado como sinônimo de “rico” não significa que os
ricos sejam sempre bons, o que seria uma crença demasiado pueril para ter
qualquer eficácia retórica, mas, simplesmente, que é melhor ser rico que ser
pobre -- uma verdade que os pobres conhecem até mais que os ricos.
Isso sem contar o fato banal de que qualquer adjetivo pode
ser usado em sentido literal ou em sentido irônico, dependendo da construção da
frase. Para usar os termos clássicos de Saussure, o significado das palavras
não é decidido no nível da língua, mas no da fala –
no uso concreto que as pessoas fazem da língua.
Publicado no Diário do Comércio.