Por Saulo de Tarso Manriquez
As mais de duas mil pessoas que padeceram nos ataques
perpetrados pelo grupo islâmico Boko Haram nos últimos dias não serão
lembradas. Elas não são “Charlie”, nem “Charlies”. Não são símbolos de valores
ocidentais e, portanto, ninguém marchará e nenhum mantra será repetido para
homenageá-las.
As democracias ocidentais têm demonstrado um justo apreço
por um dos pilares sobre os quais estão assentadas. No entanto, é no mínimo
preocupante pensar no alarido feito por conta dos ataques à liberdade de
expressão dirigidos ao Charlie Hebdo (que implicaram a morte de pessoas que a
exerciam) e, simultaneamente, constatar um silêncio sepulcral das mesmas
democracias sobre atrocidades maiores, mais sistemáticas e mais cruéis
verificadas ao redor do mundo. Não se está aqui negando uma questão de ordem
prática ínsita ao caso: o fato dos ataques terem ocorrido na França, uma
democracia ocidental, um país cujas ideias e convulsões revolucionárias
inspiraram processos de independência e declarações de direitos em outras
partes do oeste do globo. Tal fato explica, de certa maneira, a ênfase dada à
tragédia e a um dos valores atingidos: a liberdade de expressão. Na terra da
liberté, egalité, fraternité, a liberdade de expressão é um desdobramento óbvio
do pilar “liberdade”, comum aos povos ocidentais, sejam eles mais ou menos
secularistas, sejam eles mais ou menos alinhados à tradição romana-católica, à
tradição britânica, ou ao pensamento iluminista continental (francês). Porém, a
ordem prática que por um lado explica as marchas e as selfies com cartazes “Je
suis Charlie”, por outro não justifica a omissão e a indiferença para com
outras violações de direitos verificadas em terras não ocidentais.
Os valores ocidentais são, efetivamente, um plural e as
democracias ocidentais se escoram sobre vários pilares. Assim, quando se opta
por uma defesa (no caso não militar, mas discursiva e midiática) um tanto
quanto histriônica de um valor ou direito e não se faz, na mesma proporção, ou
ao menos com o mesmo elã, a defesa (não necessariamente militar, mas
essencialmente discursiva e midiática) de outros valores e direitos, o que se
comunica é uma ordem invertida de valores e direitos,bem como a afirmação de
que algumas vidas valem mais do que outras diante de um mesmo tipo de inimigo.
Ao dizer isso aos povos não ocidentais, os ocidentais avisam que sua ordem
simbólica está doente, que sua civilização está em decadência.
A marcha de Paris, as pessoas que viraram Charlie, as
selfies bom-mocistas e os editoriais amedrontados das emissoras de TV e dos
jornalões impressos, antes de significarem resistência cultural e uma retomada
do sentido civilizacional do hemisfério, são um prenúncio de queda e um convite
ao domínio total das tiranias orientais fundadas na “guerra santa” contra o
Ocidente decaído.
PS: Não estou aqui dizendo que não se deve intervir
militarmente contra o ISIS e o Boko Haram. Estou analisando a coisa sob uma
perspectiva comunicacional, propagandística, discursiva.
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Saulo de Tarso Manriquez é mestre em direito pela PUC-PR.