sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Alguns são mais Charlie que outros

Por Saulo de Tarso Manriquez

As mais de duas mil pessoas que padeceram nos ataques perpetrados pelo grupo islâmico Boko Haram nos últimos dias não serão lembradas. Elas não são “Charlie”, nem “Charlies”. Não são símbolos de valores ocidentais e, portanto, ninguém marchará e nenhum mantra será repetido para homenageá-las.

As democracias ocidentais têm demonstrado um justo apreço por um dos pilares sobre os quais estão assentadas. No entanto, é no mínimo preocupante pensar no alarido feito por conta dos ataques à liberdade de expressão dirigidos ao Charlie Hebdo (que implicaram a morte de pessoas que a exerciam) e, simultaneamente, constatar um silêncio sepulcral das mesmas democracias sobre atrocidades maiores, mais sistemáticas e mais cruéis verificadas ao redor do mundo. Não se está aqui negando uma questão de ordem prática ínsita ao caso: o fato dos ataques terem ocorrido na França, uma democracia ocidental, um país cujas ideias e convulsões revolucionárias inspiraram processos de independência e declarações de direitos em outras partes do oeste do globo. Tal fato explica, de certa maneira, a ênfase dada à tragédia e a um dos valores atingidos: a liberdade de expressão. Na terra da liberté, egalité, fraternité, a liberdade de expressão é um desdobramento óbvio do pilar “liberdade”, comum aos povos ocidentais, sejam eles mais ou menos secularistas, sejam eles mais ou menos alinhados à tradição romana-católica, à tradição britânica, ou ao pensamento iluminista continental (francês). Porém, a ordem prática que por um lado explica as marchas e as selfies com cartazes “Je suis Charlie”, por outro não justifica a omissão e a indiferença para com outras violações de direitos verificadas em terras não ocidentais.

Os valores ocidentais são, efetivamente, um plural e as democracias ocidentais se escoram sobre vários pilares. Assim, quando se opta por uma defesa (no caso não militar, mas discursiva e midiática) um tanto quanto histriônica de um valor ou direito e não se faz, na mesma proporção, ou ao menos com o mesmo elã, a defesa (não necessariamente militar, mas essencialmente discursiva e midiática) de outros valores e direitos, o que se comunica é uma ordem invertida de valores e direitos,bem como a afirmação de que algumas vidas valem mais do que outras diante de um mesmo tipo de inimigo. Ao dizer isso aos povos não ocidentais, os ocidentais avisam que sua ordem simbólica está doente, que sua civilização está em decadência.

A marcha de Paris, as pessoas que viraram Charlie, as selfies bom-mocistas e os editoriais amedrontados das emissoras de TV e dos jornalões impressos, antes de significarem resistência cultural e uma retomada do sentido civilizacional do hemisfério, são um prenúncio de queda e um convite ao domínio total das tiranias orientais fundadas na “guerra santa” contra o Ocidente decaído.


PS: Não estou aqui dizendo que não se deve intervir militarmente contra o ISIS e o Boko Haram. Estou analisando a coisa sob uma perspectiva comunicacional, propagandística, discursiva.


Publicado no site "Mídia Sem Máscara



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Saulo de Tarso Manriquez é mestre em direito pela PUC-PR.